sexta-feira, 27 de março de 2009

Partilha

Uma das coisas mais excitantes que se podem fazer com os resultados do teste genético da 23andme consiste em partilhar a informação com outros, à procura de parentes desconhecidos. Faz-se assim: quando encontramos, por exemplo nos fóruns do site, alguém com quem temos curiosidade em comparar os nossos genes, é só enviarmos-lhe um convite e esperar pela resposta.

Quase toda a gente aceita partilhar a sua informação genética ao nível “básico”, ou seja desde que não se revelem quaisquer pormenores específicos do seu ADN, em particular sobre riscos de doença. Partilhar com desconhecidos custou-me um bocadinho no início, mas rapidamente percebi que a minha privacidade não estava em jogo e fiquei viciada. Neste momento, já tenho 17 “amigos” nesta rede social genética, todos eles perfeitos desconhecidos (que eu convidei ou que me convidaram).

Uma vez o convite aceite por ambas as partes, podemos comparar os nossos genomas através de uma funcionalidade chamada “herança familiar”, que permite ver se existem bocados de ADN nos nossos cromossomas que coincidem.

Em princípio, esta opção serve para comparar genes entre familiares próximos, onde se sabe à partida que existem grandes troços de ADN em comum. E, pelo que pude ler, é bastante improvável que venhamos a encontrar este tipo de coincidência genética, por acaso, em pessoas de quem nunca ouvimos falar.

Imaginem portanto o meu espanto ao descobrir que quatro dos meus 17 “amigos” são provavelmente meus parentes, meus “primos” afastados! Custa a acreditar, mas é verdade: quando comparei a minha informação genética, à escala do genoma todo, com essas pessoas, surgiram no diagrama comparativo, pintados a azul, troços inteiros de cromossomas. Com uma das pessoas, a coincidência chegou a abranger uma sequência de 20 milhões de “letras” do ADN no cromossoma 5. Com outra, como se pode ver na imagem (onde ocultei o nome da pessoa, por razões óbvias de direito à privacidade), a coincidência envolve uma sequência de 10 milhões de letras no cromossoma 4.


O que é que isto significa? Significa que, segundo os resultados genéticos parciais que temos, um dos nossos respectivos pais (ou mães) nos transmitiu um bocado de cromossoma idêntico (em inglês, a expressão utilizada é half-identical, para lembrar que esse bocado provem de apenas um dos nossos progenitores). E isso quer dizer que esse pai ou essa mãe, por sua vez, partilhavam ou partilham entre eles ou bocados “meio-idênticos” de ADN – ou seja, eram ou são “primos” (um pouco menos) afastados. E assim sucessivamente, até remontar a um antepassado comum, que terá vivido há uns séculos atrás.

Eis o que me respondeu outro desses meus “primos”, com quem partilho uma sequência “meio-idêntica” de 10 milhões de letras de ADN no cromossoma 9, quando lhe exprimi as minhas dúvidas acerca desta conclusão: “Sim, quer mesmo dizer que temos um antepassado comum, que pode ter vivido há 300-400 anos atrás, conforme a taxa de recombinação genética na região onde vivia. É pouco provável que esse antepassado comum tenha vivido há mais do que 300-400 anos, porque se assim fosse, a recombinação [dos genes a cada nova geração] já teria eliminado [o troço de ADN meio-idêntico] da ancestralidade que ambos partilhamos.” Pareceu-me razoável.

Também perguntei a uma cientista especializada em ancestralidade genética e ela confirmou.

Aparentemente, este tipo de situação não é assim tão invulgar nas comunidades, nomeadamente religiosas, que não se costumavam misturar muito com outras através do casamento – e que ao mesmo tempo fizeram, a dada altura, parte de uma diáspora, espalhando-se pelo mundo devido às mudanças religiosas e políticas nos países onde viviam.

segunda-feira, 23 de março de 2009

A4793G

É o nome de código da mutação pontual, no meu ADN mitocondrial, que assinala que pertenço ao haplogrupo materno (ou linhagem matrilinear) denominado H7. Isso significa que, na posição 4793 do meu ADN mitocondrial, em vez de ter a letra A (a “base”, ou tijolo de construção do ADN, chamada adenina), tenho uma outra base, a guanina (G). A linha correspondente foi destacada a roxo na imagem. Mas essa não é a minha única mutação relacionada com a minha ancestralidade, pois o meu ADN mitocondrial contém também, como é óbvio, as diversas mutações que se foram acumulando, ao longo do tempo, nos genes das minhas “antepassadas”, desde que a chamada “Eva mitocondrial” (a mãe de todos os seres humanos modernos, que terá vivido em África há uns 200 mil anos) pisou o planeta.


A 23andme diz-me que a sequência de mutações pontuais que, partindo da mutação A4793G (para abreviar, chamam-lhe 4793), e viajando para o passado, permitem remontar do haplogrupo H7 até à Eva mitocondrial, é a seguinte: 4793, 2706, 7028, 11719, 12705, 10398, 10873, 15301, 8701, 9540, 1018, 769, 13650, 16278, 3594, 4104, 7256, 7521, 10810, 15301, 16129, 16187, 16189, 825, 8655, 2758, 2885, 7146, 8468, 16230, 11914, 10589, 6185, 4312 (uma verdadeira sopa de números!) As mutações nas posições 2706 e 7028, por exemplo, definem o haplogrupo H, do qual o H7 é um sub-haplogrupo directo. E, remontando pelos ramos da árvore até ao tronco, passa-se por outros haplogrupos mais antigos: HV, R, N, L3, L2, L1, até àquela mãe primordial.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Quero mais!

Apetecia-me mandar sequenciar a totalidade do meu ADN mitocondrial (a parte do genoma que nos informa sobre a nossa linhagem materna directa). O site o mais indicado para isso parece ser o Family Tree DNA. Só que, das três modalidades que eles propõem – mtDNA, mtDNAPlus, mtFullSequence, a única que me interessa, porque me dá mais do que a 23andme, é a terceira – e custa neste momento 495 dólares. Ainda estou a ponderar. As outras duas opções fornecer-me-iam muito menos informação do que a que já tenho, e portanto uma definição menos precisa do meu “haplogrupo” (família genética) materno. A primeira (129 dólares) determina apenas 22 SNP (mutações pontuais) na chamada Região Hipervariável 1 do ADN mitocondrial (HVR1), que é como se olhássemos para ele com uma vulgar lupa de mão; a segunda (189 dólares) acrescenta uma série de SNP pertencentes à Região Hipervariável (HVR2), o que já representa uma resolução um pouco mais elevada. Mas compare-se com o que faz a 23andme, que determina cerca de 3000 SNP distribuídos não só pelas HVR1 e 2, mas também pelo resto da molécula de ADN mitocondrial toda, e está tudo dito. A vantagem da FTDNA é, porém, que como existe há mais tempo e têm muito mais clientes do que a 23andme, há muito mais gente com quem comparar os nossos resultados à procura de semelhanças.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Pintar os cromossomas

Eis uma visualização dos meus cromossomas 1 a 22 (na realidade, cada um representa duas cópias de cada cromossoma, uma cópia vinda do meu pai e a outra da minha mãe). Há mais dois cromossomas (o par número 23), que não estão aqui representados e que determinam o sexo da pessoa. No meu caso, como sou mulher, herdei um cromossoma X de ambos os meus progenitores e sou XX.

Esta funcionalidade do site da 23andme, chamada ancestry painting, permite ver a origem dos meus cromossomas por grande região geográfica.



No meu caso, a imagem mostra que 99 por cento dos meus cromossomas 1 a 22 são de origem europeia (pintados de preto). O resto do meu genoma, menos de um por cento, está pintado de laranja e é de origem asiática. Trata-se de um bocadinho do cromossoma 8, vindo apenas de um dos meus pais (simbolizado pelo facto que só a metade inferior desse bocadinho está pintada de laranja); e de um bocado algo maior do meu cromossoma 18, que revela ter a mesma origem geográfica em ambos os meus pais, pois está totalmente pintado de laranja. A pintura dos cromossomas tem outra faceta muito interessante, mas essa história fica para outra ocasião.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Origens

Para tornar mais coerentes os cálculos de risco face às diversas doenças, temos de auto-definir, no site da 23andme, a nossa “classificação étnica”, que mais não quer dizer, no fundo, do que a origem geográfica dos nossos antepassados que conhecemos. Quando tentei fazer isto a primeira vez, não encontrei o que achava ser a minha classificação: Europa do Leste.

Os meus avós vieram todos da Ucrânia, perto de Odessa, o que é claramente o Leste da Europa, mas só tinha como opções Europa do Norte e Europa do Sul. O que é que tinha acontecido à Europa do Leste? Tinha de escolher entre as duas? O mais próximo era Europa do Sul mas não me parecia suficientemente específico – até por toda a diferente história dos judeus ibéricos (sefarditas) e os da Europa Central e de Leste (asquenazins). A lacónica resposta a mais um mail foi “Ponha Europa do Sul”. OK; foi o que fiz.

Devo dizer que fiquei satisfeita ao ver que os meus genes me davam razão a mim também. Utilizando uma coisa chamada “semelhança global avançada”, vi que efectivamente, o grupo de que estava mais próxima em termos de semelhança genética era o dos “ucranianos” – e que estes se situavam, devidamente, entre a Europa do Sul... e a do Leste (a mancha verde maior, nas imagens, sou eu).




terça-feira, 3 de março de 2009

As coisas evoluem depressa!

Enquanto aguardava pelos meus resultados, tive a oportunidade de espreitar o tipo de resultados que iria receber. O site da 23andme permite criar logo uma conta de utilizador e explorar os genes de uma família fictícia, os Mendel (discreta homenagem a Gregor Mendel, considerado o pai da genética).

Uma das dúvidas que me surgiram nessa altura foi a seguinte: aparentemente, não iam testar a presença de mutações nos genes BRCA1 and BRCA2. Ora, as mutações nestes genes são de alto risco para o cancro da mama. Mandei-lhes um mail e responderam-me o seguinte: “No futuro, esperamos incluir análises adicionais para identificar algumas das mutações mais comuns dos genes BRCA associados ao cancro da mama.”

O futuro era logo ali, poucas semanas depois, quando finalmente chegaram os resultados. Estes incluíam de facto a análise de três possíveis mutações nesses fatídicos genes. Mas não percebi logo. Entrei na página dos meus resultados e só depois é que me dei conta da importância do que estava a ver. Foi um grande susto, deveras, porque eu estava confiante – o futuro é suposto ser mesmo no futuro – de que não se tratava desses. Felizmente, não sou portadora de nenhuma das três mutações.



Mas mesmo o facto de não ter as mutações não significa que não seja portadora de outra das milhentas que podem atingir estes genes. Como dizia também aquele mail de resposta, isto não é um diagnóstico do meu risco real face ao cancro da mama hereditário, pois tal exigiria uma sequenciação completa dos genes em causa – ou seja, a leitura de todas as letras que os compõem – à procura de todas as mutações possíveis. O que a 23andme não faz.

domingo, 1 de março de 2009

Viagem aos meus genes

(clique no título para ler o texto na íntegra)
Ver PDF do artigo do PÚBLICO

A ideia de conhecer os segredos do meu ADN fascina-me há anos. Não tanto para saber da minha predisposição para esta ou aquela doença, mas pelo que os meus genes me poderiam contar sobre a origem dos meus antepassados longínquos. Recentemente, o preço destas análises genéticas tornou-se suficientemente abordável para ser feito por qualquer pessoa (umas centenas de euros) e propus ao P2 que arcasse com os custos da minha análise genética, que eu contaria o que me fosse revelado - o bom e o mau e o assim-assim. Aqui vai. Bem-vindos a mim!

As instruções dizem para cuspir para dentro do tubinho de plástico. São 10h00 numa manhã de Dezembro. Na casa de banho, abro a proveta e começo a cuspir. Não comi nem bebi nada, nem escovei os dentes (mais instruções) na última meia hora. Não me posso enganar, tem de sair bem à primeira.
Ao contrário do que pode parecer, não é fácil encher com três centímetros de cuspo um tubinho com mais de um centímetro de diâmetro, "tentando não fazer bolhas", como também mandam as instruções. Para facilitar o processo, dizem que temos de esfregar a língua na parede interior das bochechas. É o facto de passear a língua na boca que garante que, juntamente com a saliva, caiam dentro da proveta células da mucosa bucal. São essas células que contêm o ADN que vai ser analisado.

- texto integral -


Faço-o vezes sem conta, parece-me ter a boca cada vez mais seca, mas é apenas uma impressão: a saliva vai escorrendo e o nível de líquido vai subindo lentamente na proveta, até atingir o traço que marca a quantidade certa a recolher. Não é bem cuspir, é mais babarmo-nos, mas com grande precisão. Olho para o relógio: foram precisos quase 15 minutos para completar a operação.
Fecho o tubinho com uma tampa grande, especial, que ao ser enroscada liberta dentro da saliva uma solução destinada a preservar a amostra. Agito-o muito bem para misturar tudo, retiro a tampa e coloco outra, mais pequena, normal, definitiva. Já está. Ponho a proveta dentro de um envelope acolchoado, endereçado para a Califórnia, que depois vou despachar por correio especial.
Foi no início do mês de Dezembro que encomendei este kit de teste genético no site da empresa 23andme.com. Poucos dias depois já tinha recebido, por correio expresso, uma caixinha verde, com o meu nome e apelido bem visíveis no exterior, em letras garrafais, junto ao número de código que me daria acesso on-line aos meus resultados quando estivessem prontos. Era dentro da caixinha que vinham a proveta, as duas tampas e a lista de instruções.

Genes com nome e apelido
A 23andme é uma das várias empresas que actualmente oferecem a qualquer pessoa a análise do seu ADN individual. É uma das mais conhecidas e é também considerada uma das mais sérias. Igualmente aliciante é o facto de terem baixado drasticamente o preço do teste no final do ano passado. Por apenas 399 dólares, propõem não só uma visita guiada aos nossos cromossomas, à procura dos segredos escondidos no nosso ADN - principalmente doenças (brrrr!) -, mas também a descrição de uma série de traços físicos e psicológicos e até um vislumbre dos nossos antepassados. Pela primeira vez, tornou-se possível obter informações sobre o nosso próprio ADN, um ADN com nome e apelido, não o de um anónimo representante da espécie Homo sapiens sapiens.
Não se trata de ler o nosso genoma na íntegra - isso ainda está fora do alcance monetário da esmagadora maioria - mas apenas uma (pequeníssima) parte dos seis mil milhões de letras que compõem o ADN (metade vinda da nossa mãe e metade do nosso pai, e que se juntam em pares nos nossos cromossomas).
Esta alternativa mais modesta consiste em detectar bocadinhos de apenas uma letra de ADN, chamados SNP (single nucleotide polymorphims, pronunciar snips) onde residem mutações pontuais. Por um lado, quando um snip está situado dentro de um gene, altera o seu funcionamento; por outro, mesmo que esse snip não afecte directamente nenhum gene, o facto de ter sofrido uma mutação pode indiciar que, perto dele, existe alguma mutação - essa sim, relevante para a saúde - num gene ainda não identificado. O snip serve neste caso de marcador, de sinal, e pode permitir detectar mutações importantes. "O SNP serve de baliza de uma forma semelhante à que as pessoas utilizam para descrever localizações", lê-se no site da 23andme. "Podemos não saber onde fica a loja de ferragens do bairro, mas se soubermos que está situada, no máximo, a um quarteirão de distância da farmácia aonde fomos no outro dia, vamos conseguir encontrá-la." Estima-se que existam cerca de 10 milhões de SNP no genoma humano e a 23andme lê actualmente 550 mil desses SNP nas nossas células, sabiamente distribuídos por todos os cromossomas.
O objectivo principal, diz a 23andme, é informar as pessoas acerca dos seus riscos de saúde, porque essa informação - que poderá motivar mudanças de estilo de vida ou até fazer com que fiquemos mais atentos ao aparecimento de determinados sintomas - é uma nova forma de controlo que adquirimos sobre a nossa própria vida.
A minha motivação, porém, é um pouco diferente: a ideia de conhecer o meu ADN, de olhar para as sequências das minhas letras A, T, G, C, fascinava-me há anos. Imaginava que me pudesse revelar coisas fascinantes acerca dos meus antepassados. Nunca me interessei muito pela minha genealogia próxima, mas a genealogia genética, a possibilidade de ficar a conhecer as minhas raízes à escala dos milénios, isso parecia-me valer a pena. Se ainda por cima fosse possível ligar a informação genética a dados históricos sobre os meus antepassados mais próximos, ainda melhor.
Portanto, mal surgiu uma oportunidade de me tornar cobaia destas experiências de "genómica pessoal" (é assim que chamam a esta nova área), não resisti. Considerei, como é óbvio, o risco de vir a descobrir coisas terríveis sobre mim própria, doenças hereditárias, deficiências biológicas contra as quais nada poderia fazer. Seria melhor saber ou não saber quais os meus riscos de ter cancro da mama? Mas a curiosidade acabou por ser mais forte do que os receios. E foi assim que acabei a cuspir para dentro do tubinho.

A hora da verdade
Recebi os resultados quase dois meses mais tarde. Um mail: "Parabéns! Os dados da pessoa cujo nome é referido acima já estão disponíveis no site 23andme". A seguir, os dados para login e um link para o Getting Started Guide...
Digitei o meu user e a minha palavra-chave, disposta a encarar os resultados sem hesitar. Mas devo confessar que me senti um pouco como quando, anos antes, recebera os resultados de um teste ao HIV, por ocasião de um pedido de crédito à habitação: cheia de medo - apesar de pensar que não havia grandes riscos de o veredicto ser mau. E, tal como naquela ocasião, também pedi ao meu marido para ficar ao meu lado e segurar a minha mão...
"Welcome to you" ("Bem-vindo a você próprio") foi a primeira frase que apareceu ao aceder à minha página pessoal. Por baixo, várias secções: "A minha saúde e as minhas características"; uma secção de inquéritos; e outra chamada "semelhança global". Onde estavam os meus resultados? Onde estavam os meus genes? A lista das doenças? A origem dos antepassados? Tudo parecia, à primeira vista, muito confuso. Comecei pelos meus "dados brutos" - ou seja, as sequências de letras do meu ADN que tinham sido descodificadas, e descobri que a sua leitura era, no mínimo, indigesta. Listas e listas de milhares de números, letras, nomes de genes, links para bases de dados genéticas incompreensíveis, comparações com "sequências de referência" (fossem lá o que fossem) das quais nunca tinha ouvido falar.
Voltei à pagina inicial e, decidida a despachar primeiro a questão das doenças, cliquei no link "A minha saúde e as minhas características". Uma das primeiras coisas que tive de fazer foi escolher visualizar (opt-in) os resultados relativos a um tipo de cancro da mama hereditário. Como estava um pouco nervosa com toda a situação, imaginando o que poderia vir a descobrir de aterradoramente inevitável, fiz quase precipitadamente aquilo que devia, pelo contrário, ter ponderado com mais cuidado: carreguei alegremente na confirmação de que sim, queria ver os resultados. Percorri a nova página até ao fundo e só então percebi do que se tratava.
Acontece que estes resultados dizem respeito a mutações que podem atingir dois genes tristemente célebres, chamados BCRA1 e BCRA2. Estes genes, apesar de serem responsáveis por apenas dois por cento dos cancros da mama, fazem disparar, nas suas portadoras, as hipóteses de desenvolver cancro da mama (e do ovário) para 50 a 80 por cento. Um nível de risco que raia a certeza absoluta. E mais ainda, como pude ler na mesma página, nos judeus asquenazins (entre os quais me incluo), essas mutações são responsáveis por 80 a 90 por cento dos cancros da mama e do ovário hereditários. Mas, felizmente, não sou portadora de nenhuma das três mutações testadas pela 23andme. Só que, a posteriori, tenho suores frios: como é que me teria sentido se o veredicto tivesse sido diferente? Como é que se vive com uma coisas dessas a pairar por cima da nossa cabeça?

Dezenas de doenças
Também descobri que tenho riscos acrescidos (mas não certezas, aqui as coisas são mais suaves) para duas outras doenças: três vezes mais hipóteses (1,4 por cento) do que a média de contrair um dia a doença de Crohn (uma inflamação auto-imune crónica do intestino) e quase duas vezes e meia mais hipóteses (2,3 por cento) de vir a ter diabetes de tipo 1 (causada pela destruição das células produtoras de insulina do pâncreas). A primeira tem uma componente hereditária de 50 a 60 por cento; a segunda, de 72 a 88 por cento. Curiosamente, tanto quanto sei, não tenho uma história familiar destas doenças. Mas terei de ficar alerta a partir de agora - e falar com o meu médico para ver se posso fazer algum tipo de prevenção.
No total, o meu relatório contém 102 itens, entre doenças, mutações graves, atributos físicos e outros. Nalguns casos, a relevância dos SNP analisados está amplamente confirmada, mas o impacto das mutações não é assim tão grande. Noutros, ainda não há consenso sobre a relevância dos respectivos SNP. Uma grande parte das informações que nos dão baseia-se em resultados preliminares. Mas os dados são apresentados na mesma e deixados à nossa apreciação. Há links para os mais recentes artigos científicos sobre cada tema, o que nem sempre é esclarecedor, pois as conclusões são frequentemente contraditórias. Mas está tudo indubitavelmente bem feito.
Rapidamente: tenho um risco mais elevado do que a norma para uma série de cancros, riscos médios para outros e riscos reduzidos para outros ainda. Mas quem não tem? Felizmente, não pareço ser candidata à esclerose em placas, para a qual a propensão genética é bastante decisiva (24 a 86 por cento).
O meu risco é médio para as crises cardíacas (cuja componente hereditária poderá atingir os 57 por cento). Já agora, ter um "risco médio" pode ser bastante incómodo, se esse risco médio for alto... e, no caso do enfarte, ronda os 20 por cento. Pior ainda, no caso da obesidade, onde o meu risco também é médio - esse risco é de... 60 por cento (na população norte-americana, pelo menos). Tudo é relativo, em suma. Mas é claro que o meu risco também é influenciado pelo meu estilo de vida, alimentação, etc. - e que, em abono do lado positivo das coisas, acho que tenho alguma margem de manobra para minimizar os riscos.

Olhos castanhos
Do lado dos traços físicos, fiquei a saber que tenho "provavelmente os olhos castanhos". De facto, são verdes. O meu pai tinha olhos castanhos, mas eu não, disso tenho a certeza. Ora, o verde aparece no relatório apenas como terceira escolha, a seguir ao azul. Quando vi o resultado, pensei: "Se não acertam na cor dos olhos, qual é o grau de confiança do resto?" Mas a realidade, como se lê logo a seguir na mesma página, é que, apesar de ser quase totalmente hereditária, a cor dos olhos é governada por uma catadupa de genes. Ou seja, a genética da cor dos olhos é muito complexa e ainda não se conhece a maioria dos genes envolvidos. Outra surpresa foi descobrir que os meus genes ditam que é provável que não tenha muitas sardas nem sinais. Não pude deixar de rir - tenho imensas sardas e sinais. Mas, no fundo, como a cor da pele e a dos olhos estão ligadas, era lógico que se enganassem aqui também.
Os meus genes e eu concordamos, contudo, nalguns pontos: dizem-me que sou intolerante à lactose (e, de facto, beber leite dá-me náuseas); que sou susceptível às gastroenterites virais (como já constatei...); que a cera dos meus ouvidos é húmida (certo!); e que não coro quando bebo álcool (certo!). Mas também me informam que não deveria gostar do sabor amargo dos brócolos nem do café sem açúcar - mas gosto -; que não sou resistente à malária nem ao HIV (espero nunca ter oportunidade de o confirmar); que tenho músculos de corredor (talvez devesse dedicar-me ao jogging... mas não me dedico). Um último resultado - e aqui confio na genética: não tenho a mutação associada à mucoviscidose (ou fibrose cística, uma grave doença hereditária). A informação é importante para os portadores, porque, mesmo que a pessoa não tenha a doença, pode transmiti-la à sua descendência.
Há também, nesta extensa lista, uma série de atributos do foro cognitivo, tais como "medidas da inteligência" (parece que sou esperta!); memória (parece que tenho boa memória!). Também dizem que aprendo com a experiência. Mas aqui encontramo-nos em terreno muito movediço, como é fácil imaginar.

Raízes genéticas
Como já disse, a minha principal motivação, ao encomendar o kit, era conseguir descobrir alguma coisa acerca dos meus antepassados - ou melhor, das minhas antepassadas, uma vez que, sendo mulher, não herdei o cromossoma Y do meu pai e, por isso, não é possível obter dados inequívocos sobre os meus antepassados paternos a partir do meu ADN. Para isso, seria preciso que o meu irmão, ou um dos seus filhos, fizesse o teste do cromossoma Y, mas isso é outra história.
Para determinar a minha "herança matrilinear", a 23andme analisou o meu "ADN mitocondrial", uma parte do património genético que não se encontra no núcleo das células, como o resto dos genes, mas numas estruturas chamadas mitocôndrias, que são as baterias das células transmitidas, intactas, da mãe para os filhos de ambos os sexos, dentro da "clara" do ovócito. Ao contrário do que acontece com o resto do genoma - onde metade da informação vem do pai através do espermatozóide e a outra metade vem do óvulo da mãe -, as mitocôndrias e o seu lote de genes provêm apenas da mãe.
O ADN mitocondrial, que contém uns 16 mil pares de "letras" (A, T, G, C), foi legado à nossa mãe pela nossa avó materna, a esta última pela nossa bisavó materna e por aí fora. Ao longo das gerações, este bocadinho de ADN vai sofrendo mutações cuja frequência é mais ou menos conhecida. Esta particularidade tem sido usada pelos geneticistas como um "relógio molecular" para recuar no tempo (e no espaço) até à chamada "Eva mitocondrial", a mãe de todos os seres humanos modernos. Graças aos estudos do ADN mitocondrial, é hoje consensual que essa mulher primordial viveu em África há uns 200 mil anos.
De cada vez que uma nova mutação surge no ADN mitocondrial de uma mulher, e que essa "mãe fundadora" a transmite aos seus filhos, isso dá, em princípio, origem a uma nova linhagem matrilinear. Mas nem todas perduram: só algumas dessas famílias genéticas - ou "haplogrupos", como dizem os especialistas - sobreviveram até hoje, nos genes dos diversos povos do mundo. E comparando as diferentes linhagens de ADN mitocondrial presentes nas populações actuais, os cientistas recuam no tempo para reconstituir, em grandes traços, a origem no tempo e no espaço dos diferentes haplogrupos e perceber as deslocações humanas ao longo dos milénios.
A 23andme sequencia o ADN mitocondrial na íntegra e, a partir daí, determina o haplogrupo da pessoa - a sua família por via matrilinear. Por vezes, o haplogrupo fornece informações que são sobreponíveis a eventos que aconteceram há apenas um ou dois mil anos.

Desilusão genealógica
O meu haplogrupo, porém, chamado H7, é aparentemente muito raro (o que deve significar, simplesmente, que ainda são poucas as pessoas cujo ADN mitocondrial foi lido e que revelaram pertencer a este grupo). Isso faz com que a origem geográfica e a idade do meu haplogrupo sejam, por enquanto, muito vagas.
Confesso que foi uma desilusão. Tinha imaginado que iria saber como terá vivido, e onde e quando, a longínqua mãe fundadora da qual sou uma descendente directa. Mas isso não aconteceu. Paciência.
Entretanto, nas últimas semanas, já visitei uma série de fóruns de clientes da 23andme, fiz uma série de pesquisas no Google, escrevi mails para aqui e acolá. Descobri que havia maneiras de comparar os meus genes mitocondriais com os de outros, mas ainda não consegui fazê-lo concretamente. Inscrevi-me numa mailing list no Yahoo! de pessoas que também pertencem ao haplogrupo H7, mas algumas das informações que recebi por essa via parecem contradizer outras, que li noutros sítios.
O que sei, por enquanto, é que o H7 é um dos descendentes de um outro haplogrupo, o H, que é hoje o mais comum na Europa e que, segundo explica a 23andme, teve origem no Médio Oriente há uns 35 mil anos. Há 25 mil anos espalhou-se pela Europa. Mas uns milénios mais tarde, no auge da última Era Glaciar, esses homens e mulheres foram obrigados a refugiar-se nas regiões mais amenas do continente - Península Ibérica, Itália, Cáucaso. O que aconteceu a seguir é sugerido por vários estudos - um deles da autoria da equipa de António Amorim, do IPATIMUP: quando o gelo começou a regredir, há uns 15 mil anos, os membros do haplogrupo H terão começado a reocupar a Europa, dando origem, mais tarde e após mais algumas atribulações, a diversos sub-haplogrupos, entre os quais o H7.

Uma sopa de letras?
Uma outra coisa que descobri acerca da "geografia" dos meus genes (e não só dos mitocondriais) é que, embora mais de 99 por cento dos meus cromossomas acusem uma origem europeia, uma porção inferior a 1 por cento tem proveniência asiática. Fiquei cheia de curiosidade quanto à origem geográfica daquela ínfima fracção vinda de outro continente...
Também pude confirmar - graças a uma interessante funcionalidade do site, a "semelhança global" apregoada na página de boas-vindas - que a população cujos cromossomas mais se parecem globalmente com os meus está centrada na Ucrânia. O que não me surpreende, uma vez que foi precisamente da Ucrânia que veio a minha família, tanto materna como paterna.
Poder-se-á objectar que, globalmente, não fiquei a saber muito mais do que já sabia. Afinal de contas, olhando para a história dos meus pais, avós, etc., consigo ter uma ideia bastante apurada das patologias hereditárias que me poderão ameaçar ao longo da vida. Não preciso de um perfil genético para isso. E também não preciso de conhecer os meus genes para saber que o melhor é ter uma vida saudável, activa, etc.. Quanto às minhas origens, permanecem tão obscuras, ou tão claras, como antes. No fundo, os dados que obtive não passam de uma gigantesca sopa de letras.
Mas não é bem assim; a situação não é estática. À medida que surgirem novas informações fidedignas acerca de um ou outro SNP entre os mais de 500 mil analisados, a 23andme actualizará rapidamente o meu perfil para as ter em conta. O serviço que pagamos inclui a actualização da interpretação dos nossos dados à luz das mais recentes investigações. O que posso perguntar-me é o que irei fazer quando eles oferecerem a todos os seus clientes a possibilidade, como já foi anunciado, de saber se estão em risco de ter um dia a doença de Alzheimer. Ainda não sei. O que sei é que, apesar das evidentes limitações desta nova ciência, continuo fascinada com aquilo que imagino que os meus dados genéticos poderão vir a contar-me no futuro. E isso é, só por si, uma aventura cada dia renovada.

(ERRATA - A dado passo refere-se que a 23andme sequencia o ADN mitocondrial "na íntegra". É um lapso. São de facto apenas os SNP, ainda que, ao contrário de outros serviços de genealogia genética, a 23andme não se limite aos SNP de uma pequeníssima porção desse ADN, chamada região hipervariável, mas leia 3000 SNP espalhados pelo ADN mitocondrial, o que dá informação de resolução mais elevada. - Publicado na secção "O PÚBLICO errou" do dia seguinte).